ESCRITOS

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

2016: um ano de despedidas

QUE 2.016 seja um ano de despedidas: renunciar a tudo o que nunca se renunciou. As pessoas. As felicidades. As tristezas. Que o ano não seja um novo ano - as novidades me assustam - mas que seja um ano de misantropia. 

Toda tristeza está em nós. Faz morada no nosso âmago. É parasita de nossos sorrisos. Toda tristeza se externaliza em alguém - o alguém que não nos quer, que não retorna o nosso telefonema, que nos trai antes mesmo de nos ter. 

Por isso, meu vaticínio: que a tristeza permaneça, nesse ano, onde deve estar: dentro de mim. E que apodreça, levando-me à angústia indelével, maculada, solitária, pusilânime. 

Que nesse ano eu possa me despedir de tudo e de todos. Só tenho um desejo: misantropia. E - se possível - um café. Com ares blasé e livros ininteligíveis.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Amar é renunciar

A OBVIEDADE das obviedades: a convivência é apaixonante. Digo isso para o pesar dos que acreditam que o amor - esse mesmo: às vezes meio platônico, às vezes meio malvado - é, assim, meio parecido com uma explosão - acontece de repente e, como um faminto, engole a tudo: inclusive a nossa razão. 

Há quem tenha fé de que o amor é assim, meio que como num conto - daqueles de fadas - onde tudo acontece com um primeiro olhar, uma primeira fala gaguejada, a garganta seca mesmo depois de um copo d'água. Pois bem. Sinto dizer a verdade: não é bem assim. E por outro lado: é exatamente assim.  

Com o tempo - tempus fugit - este que vos escreve [o pobre aspirante a colunista] percebeu algo interessante: nas suas demandas diárias por mulheres - calma, vejam bem!, não me interpretem mal - voltando: nas demandas por mulheres, este que vos escreve percebeu algo extraordinário: a convivência. 

O amor, tal como concebia antes, era algo ideal, algo inatingível. Um milagre. Como se de repente - não mais que de repente - uma anjo fosse aparecer com ele. Obviedade das obviedades: não é bem assim. 

Ele - o amor - é sorrateiro. É como o gatuno que adentra a tua casa de madrugada. É como o sentimento de nostalgia que adentra o seu âmago quando você cruza uma estrada indo para o interior de São Paulo. O amor não é algo que nasce instantaneamente, mas é uma semente que se planta. E se rega. E se colhe. 

Ele começa a existir com a convivência. Com os olhares trocados durante uma conversa. Com o ato de dividir as intempéries da vida. E com a renúncia de tudo o que se é possível renunciar. Amar -às vezes digo, com ares poéticos - é renunciar. 

Amar não é só escolher alguém para viver ao seu lado [duvido da nossa capacidade de fazer boas escolhas], mas é renunciar a todos as outras pessoas por amor a uma só. 

Amar é estar preso por vontade. É sentir-se livre estando, em suma, aprisionado. Lembro-me - muito vagamente, por sinal - das ideias de Rousseau sobre as leis: estas, quando criadas pelo próprio povo, são, em suma, expressão de sua liberdade. 

Dividir o peso e multiplicar os sorrisos. Amar não é um verbo relacionado a grandes explosões, confetes e congêneres; o amor é o próprio silêncio. Eloquente. É suportar por ter conhecimento de uma premissa básica: "suporto, porque sou suportado". 

O amor convive com a simplicidade. É aquele café da manhã diário, meio apático, meio silencioso, onde duas pessoas comem e discutem os afazeres do dia: não há muita explicação para estarem ali a conversar sobre problemas e afazeres, no entanto, elas continuam, e por algum motivo escuso - o amor, sabemos - elas não podem viver sem isso. 

Há quem diga que a renúncia seja um sacrifício. Se amar é renunciar, portanto amar seria, também, um sacrifício. Concordo: sacrifício. Sacro-ofício. Ofício sacro. Ofício sagrado. 

Consagremos o amor.




quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Todo Mundo tem Fome

TODO MUNDO tem fome. Se não é de arroz e feijão, é de amor. Alguém, que não eu, escreveu isso. Em outro contexto, em uma música qualquer. O tal do Criolo, talvez. É lógico que, para efeitos poéticos, ele colocou tudo em uma frase só. Mas isso pouco importa. O que importa é que eu, um tanto eunuco, de vez em sempre misantropo, diria; costumo repetir a frase, ou melhor, o conjunto de frases, hora sim e outrora também, toda vez que observo um casal nas ruas da cidade. 

Todo mundo tem lá suas fomes, e eu também tenho as minhas. Minha barriga está saciada, obrigado. Mas tenho fome do que há muito perdi. O amor, se é que o leitor inexistente entende. O amor também é digno de nossas fomes. E não há literato que consiga expressar, nessa velha arte a que chamamos prosa - que se pretende poesia sem o uso dos versos - a inexistência do sentimento. 

O vazio é bem mais poético do que o cheio. O vazio é, per si, a ausência do que há. E o vazio existente, ou melhor, inexistente, no estômago dos sentimentos é o que há - ou melhor: não há - de mais sentimental na vida de um misantropo como a pobre criatura que vos escreve. A fome, meus caros, é a ausência de amor. E a ausência de amor, como a ausência de suprimentos indispensáveis à vida mundana, causa à morte. 

Morte do pior tipo: aquela que se dá em vida.

O Afinador de Silêncios

[tento, a todo custo, escrever sem chopin; mas essas vozes são como ruídos em uma sinfonia]. 

O CAFÉ estava vazio. O barulho das xícaras era quase inexistente. Os funcionários se refugiavam na cozinha. Eu lia o jornal, atônito com as notícias do dia. Terror em toda a parte. O meu café - quase sem açúcar - era quase tão amargo como o dia.  

Mais adiante, numa mesa próxima à janela, um homem tomava um cappuccino. Dono de uma bigode longo, se esforçava para não ter os fios manchados pelo chocolate. Olhava para a janela, como se estivesse num sonho. Seus olhos eram vazios. Não lia o jornal. Não reparava nas pessoas. Apenas olhava para uma infinitude, olhava para um não-sei-o-quê que parecia transcender tudo ao redor. 

Foquei bem em seus olhos que pareciam lacrimejar. Tentei ler mais uma coluna, mas uma notícia, mais uma desgraça - em vão. 

O homem atrás do bigode tinha alguma coisa para além de tudo o que eu conhecia. Olhava fixamente para um ponto longe de nós.  

Levantou-se, de súbito. Foi embora. 

Silêncio.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Moça Bolha-de-Sabão

PENSO em como começar este texto. Até agora, conto: três vezes apaguei a primeira frase. Pensei em começar com uma narrativa - já reflito demais. Às vezes é bom narrar. Tenho inúmeras críticas a minha escrita: demasiado densa, demasiado chata, demasiado...demasiado. 

Parágrafos pequenos ajudam um tanto. Pensei em começar uma narrativa, sim. Pense: o homem atrás do bigode. Sim, sempre o personagem de Drummond. Por que não, oras? Tenho vinte primaveras de vida. A caminho da vigésima primeira. Quanto aos personagens, de tudo vi um pouco: de Capitu a Rolando Candiano, de Zélia Gattai à Madame Bovary. Claro, quem não? O homem atrás do bigode - o personagem que teve até um nome negado - é o que mais me chama a atenção. Ele é inacabado. Inacabado como eu. Mas isso...isso são histórias outras. 

Vejam a minha preocupação: a assimetria. O parágrafo anterior é maior do que o anterior ao anterior. A assimetria é bela, eu sei. Mas na escrita é horrível. Termino o parágrafo aqui: contento-me com a feiura. 

O homem atrás do bigode estava em um café - vejam bem. Fuma um charuto, um cigarro - decidam vocês. Qualquer coisa que soe vintage. Pois bem: ele toma um café. Está fora do pub, claro. As crianças passam na rua. É cedo. Uma dessas crianças solta, direto de seu brinquedo, uma bolha-de-sabão.

A bolha-de-sabão é um universo inteiro. Um universo colorido.  

Pronto. Esqueçam tudo o que eu disse. Cheguei onde queria. Acabou. O quê? Não gostou? Leia Machado de Assis. O quê? Gostou? Não continue. Você pode desgostar.

Sentença: canetas escorregam em suas palmas. Dedos deslizantes e sapatos cor de paraíso. Vejo e paro e penso e reflito e sinto. Um universo dentro de um olhar. Uma bolha-de-sabão. Essa é você: uma bolha-de-sabão. Um universo - minto: multiverso - a ser descoberto. Colorido e feliz. Cheio de rancores e mágoas e traumas guardados lá dentro. Leve como uma bolha. Uma bolha de sabão.  

Se você esqueceu o homem atrás do bigode, verdade seja dita: você é um estulto. O homem atrás do bigode é indelével. Ele - que pode ser eu, se quiser - passou a vida tentando descobrir o que o atraía. Por que - Deus meu, por quê? - pessoas normais, garotas normais, não o atraiam. Até ver a bolha. A bolha-de-sabão. A bolha é a chave da compreensão. 

Moças bolha-de-sabão são aquelas que palavras não descrevem. São leves como o ar. Malucas. São tudo o que o homem - que é sério, simples e forte; lembram? - não é. Seu vestido cor de renda e seu olhar livre de maldade é alguma coisa transcendente. 

Seus pés pequenos, seus olhos amendoados e suas saboneteiras escondidas embriagam. Embriagam como aguardente.

domingo, 8 de novembro de 2015

A Poesia Prevalece

O POETA é um fingidor. Minto: eu sou um fingidor. Desde os meus treze, catorze, doze anos dizem que sou poeta. Não o sou. Sou, antes de tudo, um fingidor - finjo não sentir a dor que deveras sinto. Há no sujeito que escreve - falo por mim - uma característica fundamental: a angústia. Toda a mistificação do poeta maldito - aquele que passa noites em claro a escrever coisas sem sentido algum enquanto olha o dia amanhecer pela janela - é, em suma, uma verdade incontestável. São fases: há a bonança. Há a tempestade. Há a angústia. 

A realidade do poeta - poeta que não o sou - é fatalística, teleológica: há sempre um final esperado. O final esperado é sempre o mais pessimista possível: a solidão de um quarto escuro. A música de Chopin emanando de algum lugar - talvez até mesmo da cachimônia, quem sabe - e a verve indestrutível levando ele - o poeta - a escrever sem coesão, coerência ou outra bobagem qualquer. 

A angústia nasce desta teleologia dos acontecimentos. Pense você, caro leitor, pelo menos por um pequeno instante: pense que vai morrer. Pense que uma hora, num momento qualquer, num instante igualmente qualquer, num dia normal, você acordará - talvez sorrindo, talvez chorando, talvez debilitado em uma cadeira, talvez velho, talvez novo - e, neste último dia, apesar de nada ter gosto de despedida, será a sua despedida. Imagine por um instante essa fatalidade incontornável. Não há para onde correr, não há abrigo, não há refúgio - há apenas um caminho incontornável até o pó. Ali todo sonho, toda memória, todos os sorrisos de uma vida e todos os choros irão morrer. Serão lembranças. 

Daí nasce toda a angústia: a certeza de um fim que implica, necessariamente, na escuridão. Se ao nascer diz-se, simbolicamente, que se "dará a luz"; a morte implica, necessariamente, na escuridão. Se a vida implica na esperança, na promessa, a morte implica no desassossego.  

O poeta morre em vida toda vez que se vê na escuridão do seu quarto, entregue à angústia, escrevendo para espantar demônios que não o deixam - que fazem morada no âmago de seus sonhos. Não há divã melhor do que meia-dúzia de versos. 

No entanto, há momentos de luz. Eu - que afirmo, reafirmo e afirmarei milhões de vezes, se necessário - que não sou poeta, nem escritor, nem qualquer coisa, posso dizer com a autoridade de um diletante: há momentos de luz. Os olhares, ao meu ver, são pontos de luz. 

Explico: nem sempre a verve da escrita é causada pela angústia [quase sempre é], mas nem sempre. Há olhares que são atipicamente lindos. Que são imensidões vazias - e ao mesmo tempo cheias de poesia. Olhares que desconcertam, que balanceiam, que tiram o sossego - portanto são o próprio desassossego - ao mesmo tempo que, ironicamente, trazem toda a calmaria possível ao escritor. 

São olhares que tocam na alma. Que implicam na vida, na esperança e na promessa. São vivos: e por isso implicam, necessariamente, na vida. Eu que não sou muito religioso já me peguei, por inúmeras vezes, agradecendo a Deus por um desses olhares. 

Eis a minha visão sobre a vida: há demasiada malícia em todos. Há demasiado escárnio. Há demasiado apego a carne. Não sou hipócrita, nem muito menos moralista. Sou humano, demasiado humano. Todavia, reafirmo: malícia, escárnio, apego as coisas da carne. Tento, contudo, voltar às coisas da alma a todo o tempo: ver além do que os olhos enxergam. Manter vivo o olhar poético para a realidade. 

É preciso olhar uma mulher - ah, as mulheres! - não como carne [não que isso não seja bom], mas antes de tudo, como inspiração para a poesia. É preciso ama-las - afinal são elas, as mulheres, o fator civilizacional de todo o homem - em todos os aspectos possíveis: como tesouro raro que são. Como as únicas capazes de ser para nós um sonho em noite de insônia. Sem idealismos, bobagens ou demasiada servidão: não me entenda mal, caro leitor. Mas com um amor transcendental, poético. 

A música "Teresinha", de Chico Buarque, é,  para mim, emblemática. No meu entendimento, ela especifica muito bem os três tipos de homens que existem: o bonzinho, o cafajeste e o amante de verdade. Devemos, portanto, ser como o terceiro homem da música. Ou, melhor, devemos ser como o homem da música "O Meu Amor", também do Francisco Buarque. O poeta tem o dever moral de ser um bom amante - não somente no sentido carnal do termo [já disse!], mas no sentido transcendental. 

Afinal: a poesia prevalece.

sábado, 7 de novembro de 2015

Do enxaguante bocal ao amor calado


A CALÇA APERTADA não lhe ficava bem. Aquele jeans que mais parecia leg tentava, de forma frustrada, convencê-la a mostrar suas formosas pernas. Porém, ela era recatada – talvez pela educação da família, ou por não gostar do seu corpo – ela  não ousava. E o mais interessante: era feliz assim. Em tempos modernos - onde quase tudo se resume em libertinagem, onde o pudor se tornou artigo de luxo e os recatados se tornaram pobres vítimas do preconceito anti-moral - ela ia na contra mão. Não por ser reprimida, mas por preservar o sonho da segurança, do estável. Há pessoas que veem no movimento um agente caótico: preferem o sossego do inveterado, do imutável, da tranquilidade. Obsoletos para uns, caretas para outros, hipócritas para fulanos - felizes para si. Ela, então, vestiu uma calça moletom. Afinal, seria apenas uma ida ao supemercado. Mulheres de calça moletom são as mais belas criaturas do universo. Antes de sair deu uma última olhada no espelho. Suas feições eram de uma mulher no auge dos seus 32 anos de idade. Fase em que a beleza parece regredir, porém permanece, numa mutação gradativa que dura até chegar a verdadeira beleza - que se afirma separando-se dos traços imaturos da juventude e se perpetuando de forma intrínseca nas cores matizadas de um olhar. 

Sozinha, desceu as escadas do prédio. Eram sete horas da manhã de sábado e o silêncio das ruas lhe agradava. Lá fora o céu estava azul e ela - discreta e desarrumada para os padrões - tratou de andar a passos calmos. No supermercado estavam apenas velhos e funcionários. Nada mais do que o habitual. Ela tratou de fazer as buscas de praxe: bolachas, queijo, pão e talvez um vinho para tomar mais tarde enquanto choraria assistindo Casablanca. A solidão é cruel para uma mulher. Algumas mulheres, raras, são estrelas resignadas que não necessitam da atenção de todos os homens a sua volta, assim, permanecem caladas, sempre na surdina, esperando – talvez até por um complexo infantil de princesa – o homem que saiba apreciar aquela figura quieta e fiel que nunca foi descoberta. Os homens solitários, da mesma forma, são como o pobre narrador que agora vos escreve. Donos de um complexo de poeta mal resolvido esperam – quase sempre de cabeça baixa – uma mulher igual a esta senhorita a que dedicamos o nosso texto. Uma mulher que de tão calada se torne eloquente, pois o silêncio nada mais é do que a eloquência dos sábios. Estes sujeitos, então, esperam, sempre desacreditados no meio da multidão, uma mulher que possam apreciar sem que seja necessário dizer, em palavras ditas, o que os olhos dizem em palavras do sentimento. 

Deixando o devaneio de lado, voltemos a narração. Na fileira de queijos ela se distraiu, com seus olhos de amêndoa, olhando o gorgonzola. Percebeu, talvez por intuição ou por soslaio, que estava sendo observada. A discrição é o seu ponto forte e ser observada é uma coisa atípica - ela estava acostumada a observar. Mas talvez fosse apenas impressão. Com um pouco de escrúpulo virou o rosto devagar. Na outra ponta da fileira um homem ficou desconcertado: virou o rosto rapidamente e com gestos trêmulos e nervosos fingiu se distrair com a mussarela. Ele aparentava ter uns 35 anos de idade. Usava um óculos de armação discreta, barba mal feita, aspecto de fumante, cara de escritor intelectual e proprietário de uma calvície estilosa. Uma mistura de Marcelo Camelo com barba rasa e Antônio Prata usando jaqueta. Ela perdeu alguns segundos o observando - afinal era extraordinário uma pessoa relativamente com a mesma idade que ela naquele supermercado aquela hora. Logo os dois saíram da fileira discretamente, perdendo-se um do outro. 

As compras seguiram para ela: chocolates, pipoca e talvez algo mais forte do que um vinho para esquecer a solidão. Encontraram-se mais algumas vezes, entre fileiras e produtos, trocando olhares tímidos - olhares que quando se encontravam dispersavam-se como prótons e elétrons. Foram no mesmo caixa e o coração dela disparou quando percebeu que ele estava por perto. Sempre observadora, percebeu que ele tinha cheiro de perfume com enxaguante bocal. Ele, por sua vez, olhava o pescoço dela - branco como a neve, formoso como uma dessas pinturas que retratam europeias e, quase sempre, nos deixam extasiados com sua beleza. 

Na saída do supermercado ela tropeçou e caiu. Seu corpo espalhado no chão, vibrando com o tombo, era de uma beleza ainda mais sublime. Algumas pessoas riram. Ele, que estava mais perto, foi prestativo. Com a voz tímida, quase imperceptível, perguntou se ela estava bem. O rubor em sua face era evidente. Parecia uma adolescente. Ele estendeu a mão, ajudou-a a se levantar e pegar suas sacolas. Ela agradeceu com uma olhar tímido, idílico, baixo - beirando a tristeza poética. Naquele instante os olhares tristes encontraram-se. Depois de tantos anos de solidão, de ambos os lados, as solidões fizeram-se companhia. Os passos foram automáticos - iriam para o mesmo lado. Começaram a conversar sobre a trivialidade do tempo enquanto tentavam disfarçar a tensão olhando para a rua, a paisagem, as árvores. Começaram a permitirem-se risadas e os assuntos foram fluindo enquanto as árvores e as paisagens eram trocadas pelos rostos. 

Quando olhavam-se eram tocados pelo pudor. O medo remanescente dos dois depois de tanto tempo de solidão ainda era forte. Era um medo em comum. O medo do olhar, de ter o seu rosto fitado por outra pessoa, de ser encarado. Medo de o movimento dos seus lábios – quase sempre tão calados – serem percebidos, apreciados. Tinham muita vergonha, mas alguma força maior não os deixava parar. Então falaram, riram, e o mundo pela primeira vez parecia parado enquanto eles giravam. Era estranho ouvir o próprio riso. Estranho conversar com outra pessoa. Mas estranho -  muito mais estranho - era a sensação de felicidade jamais sentida aparecendo assim, de uma fonte tão vulgar, tão inesperada. 

Ela quase não percebeu quando chegou no prédio. Despediram-se com um sorriso, trocaram telefones e ele prometeu telefonar mais tarde. Naquela noite conversaram por duas horas. Na noite do dia posterior foram mais duas. Combinaram de almoçar juntos na segunda. Ele realmente era escritor e ela trabalhava produzindo palavras-cruzadas. 

Almoçaram, riram, contaram histórias de infância, comentaram sobre os filmes do Mazzaropi e sobre as músicas de Chopin - as músicas de Chopin são a fonte de toda a inspiração e de todas as lágrimas dos solitários. Encontraram-se muitas outras vezes no supermercado, quase como um rito, fazendo compras juntos e rindo por motivos bobos. Os aposentados, tão comuns naquele supermercado aos sábados de manhã, apreciavam com seus olhos sorridentes e suas reminiscências amorosas o evidente – e idílico – amor dos dois. 

Passaram-se dois meses desde o primeiro encontro. Ela resolveu convida-lo para jantar em seu apartamento. Tomaram vinho barato, riram com os filmes do Mazzaropi e perderam a noção do tempo. Quando ele resolveu ir embora, a surpresa: eram duas da madrugada. " -Você pode dormir no sofá mesmo. Acho que tenho uma coberta no armário" - disse ela, com olhos de saudade. O problema é que voltaram a conversar sem nem ao menos perceber. Riam alto, faziam piada, se tocavam. Até perder o pudor. Até os olhares se encararem. Até o riso se transformar em desejo. Até o idílio se metamorfosear em volúpia. Volúpia cadenciada, bela, pueril, poetisa, boa, poesia... olhares de poesia. De repente o primeiro beijo. Estalo. O toque dos lábios moles, doces como o mel, culminou com a sensação de insegurança, com o disparar do coração, o arrepio dos pelos, o toque, os sentidos aguçados. O conforto junto com a tensão. O tremer das mãos, o amor deixando suas moradas do âmago, querendo se manifestar no mundo físico. As roupas, aos poucos, tornando-se desnecessárias, os beijos repetidos, os olhares cada vez mais desejosos. 

Era a primeira vez dos dois, tão acostumados com a solidão. Duas crianças de meia-idade. Amaram-se. Amaram-se até a eternidade dos instantes, banhados pela penumbra da lua que adentrava as cortinas. Amaram-se pelo silêncio, pela paz. Pela paz. Foi como um sonho. Depois do ápice, do apogeu dos sentidos, beijaram-se sorrindo. Dormiram abraçados aquele sono leve, pós apoteose. Acordaram, ao mesmo tempo, um com o olhar fixo nos olhos do outro. Beijaram-se e fizeram amor outra vez, sob a luz do sol que adentrava as cortinas. Os instantes foram eternos. 

A partir desse dia a solidão era apenas uma lembrança de um passado distante, uma amiga que se vai e jamais volta.

domingo, 1 de novembro de 2015

Chopin - do início ao fim

OS OLHOS ainda dizem muito do que os gestos e palavras e frases não dizem. Do clichê fez-se a verdade. E como expressar - em palavras, gestos, frases prontas ou mal aprontadas - a sensação singular de vê-la, com a cabeça meio baixa, meio esguia, com a mochila de flores e o olhar tão vivo quanto o primeiro sorriso de uma criança; sentar-se ao meu lado, meio que como quem não quer nada, meio que como quem quer tudo, olhando-me com olhos de menina apaixonada - toda a mulher apaixonada torna-se, ao menos por um instante, uma menina apaixonada - e prestando atenção em cada sílaba das palavras que digo - como se cada sílaba fosse a última antes da minha morte? Como se cada letra, cada esgar, cada respirada cadenciada ou sem cadência alguma - afinal, você está ao meu lado - fosse a última palavra de um livro que você não quer deixar de ler. Ou o último instante de uma música que você não quer que tenha fim.

Como posso prosear sobre o infinito dos seus olhos sendo que estou preso a minha natureza finita? Como posso prosear - ou poetizar em prosa - a sensação de voltar a ser um garoto [mesmo que a vida, depois de tantos encontros, desencontros e frustrações, tornou-me homem até demais]?; como posso voltar a estabilidade - se é quem dia estável fui - se ouço Chopin e bebo café e água e mais um pouco de café e escrevo e apago e deixo de escrever e não apago o teu olhar - delével nas minhas letras, mas indelével nas minhas ideias.

Poderia escrever sobre política. Ou redigir a primeira crônica para um jornal que jamais irei colaborar. Poderia escrever sobre deixar de escrever. Redigir receitas de bolo ou memórias de infância. Poderia escrever sobre o suicídio - o único problema filosófico que merece atenção -, ou, então, poderia escrever sobre uma resenha de um livro qualquer - que li, reli e não senti.

Mas tudo isso não seria inspirado por Chopin. O seu andar é como as nuances de sua música. Os seus dedos são como os dedos de uma pianista. E o seu olhar é o infinito que as claves, os bemóis, os sustenidos, a pauta, as colcheias e as semifusas tentam - em vão, sempre em vão - imitar.

O seu olhar é a arritmia do meu coração. É o ritmo do meu pulso. É a falta de cadencia na minha escrita. É as nuances apoteóticas da eufonia. É a minha euforia ao te ver passar - e sorrir - para mim.

domingo, 31 de maio de 2015

Gênesis, 3:19

A passagem do tempo é irremediável. Não há nada, não existe um catalisador ao contrário, um botão de start, nada pode reduzir a marcha – lenta e incessante - do tempo. 

O frio que existe lá fora é o agora. Amanhã sei que o tempo mudará: mudará porque passou, e o amanhã já não será o que hoje é o agora. No entanto, o agora de amanhã também se chamará agora. Minha sentença é digna de Confúcio, mas confusão mesmo é o que reside no meu pensamento.

O tempo é escasso. Imprevisível.

Há guerras, brigas, choros, tristezas, egoísmo, egocentrismo, falta de empatia, humilhações: e o tempo, tão curto, tão breve, tão frio e calculista, é gasto – sem a mínima reflexão – com toda sorte de sacrilégios. E depois vem a morte – reflexo do tempo que chegou, passou, ou deixou de passar – e o que resta de tudo o que existiu é a lembrança.

Lembranças são vidas que morreram, tristezas que inexistem de fato, mas que existem no âmago de quem lembra.

O homem atrás do bigode – aquele dos versos de Drummond – hoje acordou sem saber para onde iria. Pegou o metrô, pois os bondes não existem mais. São lembranças. Viu pernas brancas, negras, amarelas e se questionou o porquê de tantas pernas. Mas seus olhos não indagaram nada.

O homem atrás do bigode – que antes era sério, simples e forte – hoje é apenas a lembrança nos versos de um poeta - poeta que hoje também é só uma lembrança.

No futuro eu também serei uma lembrança. E esse texto – mal 
redigido, errático, sem estética – também será uma lembrança de outras lembranças.

E eu serei pó.


E quando se lembrarem de mim lembraram-se das reminiscências que um dia escrevi.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

O incógnito decide morrer

Ainda lembrava-se da noite em claro. E do dia claro. Lembrava-se do café pela manhã, que soou como despedida. O gosto amargo, quente, queimando a boca. Lembrava-se das notas da eufonia de Chopin que tilintavam nos seus fones de ouvido, no caminho do trabalho.


Tudo aquilo tinha gosto de primeira vez, pois era a última vez.


Via-se olhando para ela, sentando ao seu lado no transporte público. Tentando fazê-la rir. Contando uma piada. Dizendo bobagens. Sentia o olhar dela encontrando-se com o dele e logo desviando para a janela – para ver a passagem das ruas, das árvores, das pessoas. E depois voltar. Dizer que está próximo do seu ponto, mas que quer conversar um pouco mais. E silenciar. E ele já se via sem saber o que fazer, que assunto puxar, o que dizer ou deixar de dizer. Via-se dizendo que leu a apologia de Sócrates – e que ele é um louco por dizer isso a uma garota. Já sentia o seco da sua boca, o gaguejar, o coçar atrás da cabeça. E depois a tentativa – seria falha? – de recomendar um livro do Stephen King, que é mais despojado que Xenofonte. Dizendo que leu um muito bom, que conta a história de uma mulher de um escritor que morreu – e todos os problemas que decorrem disso.


“Eu queria escrever uma coisa assim, um dia.”; “Você escreve?”. “Ah, escrevo umas bobagens”. “Ah, deixa disso...”. “Se um dia quiser ver, te passo o endereço eletrônico”. E já a via rindo por ele dizer “endereço eletrônico” em vez de link.  


Mas ele sabia que isso era mentira. Que não havia nada: conversa ou silêncio, livros, olhares. Tudo o que havia era ele e o limbo de sua existência. E por ser um nefelibata, via nos sonhos um anódino para as suas dores.
Lembrava-se do fim da eufonia de Chopin.


E agora, com aquela carta na mão, sua carta de suicídio, pensava em tudo o que poderia ter sido: um mendigo ou um dono de restaurante. Ou advogado. Ele sempre gostou da profissão. Não por uma ânsia utópica pela justiça, mas pela tradição. Nos seus antigos livros de literatura brasileira, os personagens sempre eram advogados.


Ele não conseguiu ser um.


E agora, em cima de um banquinho, com uma corda no pescoço, uma lágrima decide cair. Ele não sabe o que ela significa. Já não sente mais nada. “Socorro não estou sentindo nada”, era o que dizia uma canção que ele ouviu outro dia. Mas ele não pedia socorro. Agora tudo o que existia era Chopin, o único compositor que vale a pena ser ouvido.


De repente – não mais que de repente – ele sente medo de ir para o inferno. Suicidas devem ir para o inferno. Uma aflição toma sua alma. Ele pensa em desistir, mas já é tarde. Escreveu uma carta. Fez um testamento. Doou sua biblioteca à prefeitura. E é quando uma reflexão se apossa de suas velhas células cinzentas “Vou para o inferno, mas com a certeza de que vivi o paraíso aqui na terra.” “O paraíso foi poder sonhar em sentar ao lado dela no transporte público, ver seus olhos se escaparem dos meus para olhar a janela, falar de Sócrates, Stephen King, mesmo que só nos meus sonhos”.


O banquinho que apoiava seus pés cai no chão.


As cordas apertam seu pescoço. Ele engasga. O ar parece sumir. A música de Chopin, com suas nuances, é uma constante no seu ouvido. Ele vê o mundo se apagar. Tenta respirar pela última vez. Engasga. Pensa em desistir. É tarde. Lembra-se dos olhos dela nos seus sonhos. Olha para o alto. Tem sua última visão do céu – que agora se metamorfoseou nos olhos dela, no seu sorriso, no seu jeito de sentar, de mexer no cabelo, de gargalhar, de entristecer. E minutos antes da morte ele tem medo.

E antes de chegar ao inferno, pensa: “que mal fiz eu aos deuses todos?”.



Se tem a verdade, guardem-na.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Avenida Paulista

  



   Começo 2015 com um livro terminado. Trata-se  de Avenida Paulista [ Editora Record,  286 páginas] do célebre João Pereira Coutinho. Não poderia ter começado o ano de melhor forma. A minha admiração pelo autor já é conhecida. O estilo do português - João, como evidencia o nome, é lusitano - é singular e inspirador. Ora com o humor afiado, ora com argumentos fortes, ora com um tom melancólico, o autor fascina do começo ao fim. 

   O livro é uma coletânea de textos publicados na Folha de São Paulo entre 2005 e 2008. Neles encontramos de tudo: futebol, política, amores, cinema. Flexibilidade contumaz de um intelectual de boa estirpe. 

   No entanto, o que mais ficou na minha cachimônia foi uma pequena história que Coutinho nos revela nas últimas páginas. Segundo escreve o autor, era idos de 1939 e a Europa caminhava rumo à guerra. Um pai do interior de Portugal resolve não arriscar e toma a decisão: mandará o seu filho para o Brasil. Assim ele não sofrerá os males que estavam por vir. 

- Filho, escuta, você irá para o Brasil em um navio. Chegando lá procure um tal de Vieira. Não sei o primeiro nome, nem onde mora, sei apenas que reside em São Paulo. Um dia eu o ajudei e ele irá ajuda-lo. 

   E o mancebo partiu rumo à falta de rumo. Desembarcou em Santos e tomou um carro para São Paulo. Chegou. Cidade agitada. E o desassossego que a agitação invoca. O moço não sabia para onde ir. Seguiu a multidão. Numa esquina qualquer avistou "Livraria Lusitana". Sabia - ou ao menos imaginava- que lá tinha pelo menos um português. Eis a sensação de ter alguém de casa por perto quando estamos longe. Entra. Conta a história para o sujeito da livraria. E o sujeito da livraria, pasmem, era o tal do Vieira. 

   O moço, hoje, deve ser um senhor. Se é que não faleceu, já que o livro data de alguns anos atrás.

   João é um ótimo autor, inspirador, dono de uma escrita simples e acessível. Recomendo fortemente e sonho poder um dia ter a capacidade de expressar ideias que ele tem. Por enquanto, permaneço treinando. E que comece 2015 com muitos bons livros como Avenida Paulista!