Ainda lembrava-se da
noite em claro. E do dia claro. Lembrava-se do café pela manhã, que soou como
despedida. O gosto amargo, quente, queimando a boca. Lembrava-se das notas da eufonia
de Chopin que tilintavam nos seus fones de ouvido, no caminho do trabalho.
Tudo aquilo tinha gosto
de primeira vez, pois era a última vez.
Via-se olhando para
ela, sentando ao seu lado no transporte público. Tentando fazê-la rir. Contando
uma piada. Dizendo bobagens. Sentia o olhar dela encontrando-se com o dele e
logo desviando para a janela – para ver a passagem das ruas, das árvores, das
pessoas. E depois voltar. Dizer que está próximo do seu ponto, mas que quer
conversar um pouco mais. E silenciar. E ele já se via sem saber o que fazer,
que assunto puxar, o que dizer ou deixar de dizer. Via-se dizendo que leu a
apologia de Sócrates – e que ele é um louco por dizer isso a uma garota. Já
sentia o seco da sua boca, o gaguejar, o coçar atrás da cabeça. E depois a
tentativa – seria falha? – de recomendar um livro do Stephen King, que é mais
despojado que Xenofonte. Dizendo que leu um muito bom, que conta a história de
uma mulher de um escritor que morreu – e todos os problemas que decorrem disso.
“Eu queria escrever uma
coisa assim, um dia.”; “Você escreve?”. “Ah, escrevo umas bobagens”. “Ah, deixa
disso...”. “Se um dia quiser ver, te passo o endereço eletrônico”. E já a via rindo
por ele dizer “endereço eletrônico” em vez de link.
Mas ele sabia que isso
era mentira. Que não havia nada: conversa ou silêncio, livros, olhares. Tudo o
que havia era ele e o limbo de sua existência. E por ser um nefelibata, via nos
sonhos um anódino para as suas dores.
Lembrava-se do fim da
eufonia de Chopin.
E agora, com aquela
carta na mão, sua carta de suicídio, pensava em tudo o que poderia ter sido: um
mendigo ou um dono de restaurante. Ou advogado. Ele sempre gostou da profissão.
Não por uma ânsia utópica pela justiça, mas pela tradição. Nos seus antigos
livros de literatura brasileira, os personagens sempre eram advogados.
Ele não conseguiu ser
um.
E agora, em cima de um
banquinho, com uma corda no pescoço, uma lágrima decide cair. Ele não sabe o
que ela significa. Já não sente mais nada. “Socorro não estou sentindo nada”,
era o que dizia uma canção que ele ouviu outro dia. Mas ele não pedia socorro.
Agora tudo o que existia era Chopin, o único compositor que vale a pena ser
ouvido.
De repente – não mais
que de repente – ele sente medo de ir para o inferno. Suicidas devem ir para o
inferno. Uma aflição toma sua alma. Ele pensa em desistir, mas já é tarde.
Escreveu uma carta. Fez um testamento. Doou sua biblioteca à prefeitura. E é
quando uma reflexão se apossa de suas velhas células cinzentas “Vou para o
inferno, mas com a certeza de que vivi o paraíso aqui na terra.” “O paraíso foi
poder sonhar em sentar ao lado dela no transporte público, ver seus olhos se
escaparem dos meus para olhar a janela, falar de Sócrates, Stephen King, mesmo
que só nos meus sonhos”.
O banquinho que apoiava
seus pés cai no chão.
As cordas apertam seu
pescoço. Ele engasga. O ar parece sumir. A música de Chopin, com suas nuances,
é uma constante no seu ouvido. Ele vê o mundo se apagar. Tenta respirar pela
última vez. Engasga. Pensa em desistir. É tarde. Lembra-se
dos olhos dela nos seus sonhos. Olha para o alto. Tem sua última visão do céu –
que agora se metamorfoseou nos olhos dela, no seu sorriso, no seu jeito de
sentar, de mexer no cabelo, de gargalhar, de entristecer. E minutos antes da
morte ele tem medo.
E antes de chegar ao inferno,
pensa: “que mal fiz eu aos deuses todos?”.
Se tem a verdade,
guardem-na.