ESCRITOS

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Eu te Gritarei para Casa





O homem atrás do bigode quase não falava. As palavras há muito não faziam mais sentido. Era daqueles espectros calados que andam pelas ruas sem serem percebidos. Tomava café nas espeluncas, nas esquinas. À noite, depois das aulas, tomava duas cervejas em um bar quase em ruínas antes de ir para sua casa - um sobrado herdado da falecida mãe. Era professor de filosofia e teologia em uma faculdade pública. Na verdade tudo conspirava para o seu destino vazio. Suas feições lembravam Nietzsche. Sua loucura também. Pois é, entre a molecada do bairro ele era conhecido pela miserável alcunha de "Antônio, o louco". Não era pra tanto, era apenas um sujeito calado, solteiro, solitário. 

Não era velho. No máximo trinta e três anos. Ainda estava em idade de casar, constituir família. Era dono de uma voz muda, grave, mansa. As mulheres do bairro pouco o notavam, apenas um "bom dia" aqui, uma "boa noite" acolá. Nada demais. Ninguém sabia o que ele fazia em sua casa depois que chegava da aula, sabiam apenas que ele sempre fora daquele jeito. - A mãe dele era mulher culta - dizia a velha que morava na esquina - colocou o menino na aula de piano logo aos três anos de idade, ainda me lembro! Pobre Carmen, o marido lhe deixou tão cedo! - completava a anciã. Ninguém, de fato, ligava para aquele homem. Também, nunca o viram com nenhuma mulher. Algumas pessoas até faziam chacota disso. Em dias festivos, como o natal, escutavam ele tocar seu piano, solitário. 

Dentro do velho sobrado o homem atrás do bigode chorava. O piano escuro lembrava à sua falecida mãe. Olhou para a sua biblioteca, vazio. Vazio de existência. Entre exemplares de Platão e Foucault pegou uma pequena agenda já desgastada pelo tempo. Abriu. Dentro, a foto de uma jovem. Ruiva, o olhar provocante, como se o chamasse. Do lado da foto, na outra folha, um pequeno recado. "Te amo meu poeta e sempre te amarei. Do seu eterno anjo adorado: Geni ", do lado das letras redondas havia uma pequena fita de durex prendendo um fio de cabelo ruivo. Uma lágrima rolou dos olhos do homem atrás do bigode. Seu único amor. O amor que havia o largado. O que é um poeta senão um homem abandonado escrevendo para encontrar, pelo menos em sua poesia e loucura, a mulher amada? O que é um filosofo senão um poeta? O que é um poeta senão um filosofo? 

Beijou a foto, abraçou, caiu aos prantos. Era essa a sua rotina desde o dia que ela resolvera ir, dez anos atrás. Dia após dia. Ele foi se acalmando, o choro se transformando em acalanto, a boca secando. Dormiu. Sonhou. No sonho, ela, objeto de todo sofrimento dele. Objeto do amor supérfluo que de tão supérfluo às vezes transformava-se em ódio. No sonho ela vinha provocante, sedutora, judiando do pobre desgraçado. Ele angustiado e sufocado pela noite pensou: "Deus, nem em meus sonhos eu tenho paz?"

Dez anos depois o homem atrás de bigode faleceu. A rua pareceu mais triste, principalmente em dias festivos como o natal, pois o piano não tocava mais. No seu velório, quase ninguém. Porém, entre algumas tias velhas e professores da faculdade, havia uma mulher jovem, de cabelo ruivo, óculos escuros. Ninguém sabia quem era. Dias após o velório, algumas tias velhas comentaram que ouviram essa mesma jovem  sussurrar baixinho para si mesma: "- A escuridão sempre o adorou".


segunda-feira, 13 de maio de 2013

Tempos de união e empatia, poesia






Hoje eu acordei com frio.

Havia um cobertor grande mas eu estava com frio. Não há coisa melhor do que essa sensação térmica que parece ter sido criada por Deus justamente para acompanhar a poesia. Todas pessoas que escrevem, ou quase todas, conhecem a nossa santíssima trindade: o frio, o café e a poesia.

O frio une os casais apaixonados. O frio une os irmãos e as mães que moram na miséria da rua. Nele os corpos se unem num misto de amor, tristeza e esperança. O frio nos faz pessoas melhores, nos convida a praticar a empatia tão rara em tempos modernos. Ora pois, quem nunca se pegou pensando – em um desses dias gélidos e nostálgicos – como estariam as pessoas que moram nas ruas? O nosso sinônimo de indiferença e insensibilidade aquece os corações.

Hoje eu acordei com frio.

Penso nos casais que acordaram na mesma cama, abriram os olhos e focaram o rosto um do outro. É segunda-feira, eu sei, mas penso que talvez, em algum lugar, algum casal tenha se encarado por breves instantes e depois, sem perguntas nem palavras, se beijaram, se abraçaram, se protegeram da sensação gelada, pediram abrigo nos corpos um do outro. É uma troca de favores, é um momento de proteger e ser protegido. O frio une os corpos, as almas, os medos. Contrai o nosso egoísmo.

Imagino as mulheres acordando cedo e fazendo o café para os seus maridos, homens trabalhadores, que acordam cinco da manhã para cruzar a cidade e trabalhar em algum bairro nobre de São Paulo como pedreiros. Imagino estas nobres esposas fazendo a marmita escassa, dando um beijo com gosto de café em seu amado e pedindo que, por favor, ele volte cedo. Então ele sai, agasalho com uma jaqueta fria, para as ruas da cidade, para a batalha cruel, buscar o sustento da sua família, das suas crianças. Penso nos seus filhos acordando e indo pra escola com a mãe. O frio é nostálgico, é triste, é poético.

Penso agora nos homens sozinhos, andarilhos bêbados pelas ruas da cidade, pedindo dinheiro. Cada um com sua história, suas paixões de adolescência, sua falta de fé no mundo.

O que nos resta agora é praticar a empatia e nos unir, corpos em corpos, olhares em olhares, beijos em beijos. Nos unir contra o inimigo em comum. Nos unir para proteger e sermos protegidos. É em tempos de guerra que a união se faz mais presente e é em tempos de frio que a humanidade se faz mais humana.


M&M.

domingo, 12 de maio de 2013

Pra lá de blasé







Andando por ai eu tentava me encontrar. Fora de sintonia comigo mesmo. As ruas estavam um tanto escuras, porém era dia. Meus passos eram vagarosos, compassados, pareciam entoar notas tristes, pequenas nuances do meu estado de espírito. Tudo era tão gélido, tão frio, tão seco, tão imutável. Meus olhos naquele instante eram decrépitos, sem vida, sem olhar. Minha visão era alheia, blasé a tudo o que me rodeava. Caminhei em direção ao café mais próximo. O tédio – essa doença que me corrói por dentro, que mata minhas vísceras carcomidas com o mais puro veneno da humanidade, essa cicuta que me tira da existência, a existência que, mesmo contra a minha vontade, insiste que eu viva -, o tédio me corroía por dentro. A vida não fazia sentido. Lembro-me, agora, do meu quarto escuro nos mês de Agosto. Eu sempre tive essas manias estranhas, essa sina de solidão. Trancava-me no quarto, envolto em um mundo de trevas, ouvindo Chopin. Ora pensava estar chorando, ora pensava estar dormindo. O sono se confundia com o choro que se confundia com as dores – do corpo e da alma – que me atormentavam naquelas horas – ou seriam dias? Minhas reminiscências me acompanham como pequenas cicatrizes. Peço o café para a atendente – uma mulher com o olhar malicioso e fútil – que me dá o troco com desprezo. Sento numa mesa, sozinho, sempre com o olhar fixo no chão.
“Assim como o poeta só é grande se sofrer” , já diria o poeta. Eu era triste, porém não era poeta. Olho ao meu redor e há apenas mais um senhor no café. Ele lê o jornal com os olhos cansados, talvez experientes. Começo a cogitar sobre sua vida, sua juventude, suas tristezas. E se ele tivesse servido em uma guerra? Amado imensamente uma mulher? Casado com uma prostituta? Se formado em botânica? Visto sua própria mãe morrer? Ele me encara por instantes, percebo que no meu devaneio também o encarava. Desvio o olhar, foco no meu café que borbulha. Tomo um gole amargo, estranho, quente. Amargo como a vida e negro como “Marcha Fúnebre” de Chopin. Olho para fora, as pessoas estão bem agasalhadas, suponho que a sensação térmica seja de 10 graus. O frio maior é o frio da alma. Me distraio por segundos pensando em como o frio é inspirador. Tomo mais um gole de café, olho mais uma vez para o senhor que devora o jornal. Levanto-me e vou em direção a saída. Na rua o frio me acolhe, sinto uma dor estranha oriunda de uma frente fria. Dói até nos ossos. Começo a andar com meus passos compassados, olho para o céu e uma frase invade a minha cabeça sem o meu concedimento: “O pior frio é o frio da alma”. 

M&M